Mulheres na ficção científica: de onde, então, viemos?
De acordo com o site The Conversation, em 2016, setenta e cinco por cento dos escritores de ficção científica eram homens. Obviamente, não havia a menor possibilidade de existir um número considerável de representações femininas realistas e factíveis no gênero. Não obstante, torna-se cada vez mais difícil encontrar leitoras que se sintam plenamente contempladas pelo gênero, uma vez que elas não se encontram representadas nas produções das obras. Tais leitoras não se sentem contempladas por um gênero que as exclui, e, como na vida real, as subjuga. As mulheres que têm presença nas produções são sempre apenas fruto do imaginário masculino. Nunca uma mulher, como já dito, mas uma ideia elevada à décima potência da sexualização e misoginia.
Robert A. Heinlein, considerado mestre da ficção científica, definiu o gênero como
“Especulação realista sobre possíveis eventos futuros, baseados substancialmente em conhecimento adequado do mundo real, passado e presente, e em uma compreensão aprofundada da natureza e significância do método científico.”
Heinlein inicia a sua definição abrindo margem para uma ideia de futuro que não só surpreenda, mas que seja baseado nas possibilidades que compõem o mundo real. Utilizando o pensamento lógico, mulheres são parte do mundo real. Por que, então, somos representadas de maneira completamente irreal?
O estereótipo se mantém pelas distinções entre hard e soft science. O termo hard science foi nomeado por P. Schuyer Miller, crítico norte-americano de ficção científica, em 1957.
Esta é uma acepção entre uma ficção engajada em um desenvolvimento verossímil da ciência e da tecnologia, a hard science; e uma ficção que não se debruça sobre os ditos conhecimentos cem por cento científicos, a soft science. Assim, tais fãs delimitam a hard science superior, uma vez que esta é puramente fiel aos conceitos científicos, suas definições e fatos oriundos das pesquisas diretas.
A existência de livros como Admirável Mundo Novo (1932), Jurassic Park (1990), Perdido em Marte (2011), entre outros títulos, pressupõe uma supremacia masculina na hard science fiction. Isto sendo afirmado, trago uma informação que, talvez, possa justificar a baixa produção de hard science escrita por mulheres. A UNESCO afirma que menos de 30% da força de trabalho científica é feminina. Recebendo pouco incentivo para desenvolver carreira na ciência, temos poucas mulheres nos ofícios científicos, levando-nos a crer que poucas mulheres se aventuram na queridinha hard science. Consegue compreender como o sistema é complexo, confuso e injusto?
Lembra da soft science? Pois bem. Títulos como Jogos Vorazes (2008) e Divergente (2014) entram na definição (sabe Deus de quem) de soft science. Por quê? Porque são distopias que utilizam métodos científicos em sua produção, entretanto, não priorizam leis e conceitos propriamente científicos. Tendo no gênero um favoritismo aos autores homens, os fãs são coercitivos em rotular as mulheres apenas como autoras de soft science, baseando-se em um conceito criado em 1957. Logo, há uma divisão de ficção baseada na dicotomia hard versus soft, delimitando os espaços onde os gêneros têm “permissão” para atuar.
É um tanto irônico pensar que as mulheres não têm este espaço de descoberta e produção na ficção científica e na fantasia, uma vez que o primeiro grande clássico foi Frankenstein, de Mary Shelley, publicado anonimamente em 1818. A obra narra as aventuras de Victor Frankenstein, que deseja dar vida à matéria morta, tornando-a seu humano perfeito. Pioneira na ficção científica, Mary Shelley precisou lidar com os créditos de sua obra sendo dados ao seu marido, uma vez que ele escreveu o prefácio do livro, e, obviamente, porque era uma mulher que produzia literatura no início do século XIX.
Não sem demoras, a identidade da autora do romance foi descoberta e sua obra foi rechaçada e abominada pelo público que antes louvava o texto. O British Critic dizia que:
“O escritor do livro é, sabemos, uma mulher; isso é um agravante daquilo que é a falha predominante do romance. Mas se nossa autora pode esquecer a delicadeza de seu sexo, isso não é motivo para fazermos o mesmo. Portanto, dispensaremos o romance sem mais comentários.”
Bom, British Critic, eu tenho vários, inúmeros comentários.
Primeiro de tudo, devemos e muito dar créditos à senhora Mary Shelley. A autora iniciou a escrita de sua obra de maior prestígio devido a um desafio proposto por Lord Byron (!!!), quando passou um verão na casa do poeta. A partir do rascunho e da atenção plena de Shelley às conversas do marido e de Byron sobre teorias de volta à vida e correntes elétricas, Mary Shelley se dedicou à pesquisa sobre as teorias de Benjamin Franklin, Darwin, entre outros pensadores de seu tempo.
Dedicação, pesquisa e talento foram as ferramentas que fizeram Frankenstein ser o que nós conhecemos. Como, então, a crítica britânica teve a audácia de desconsiderar a obra por ter autoria feminina?
O anonimato de Mary Shelley no século XIX pode ser compreendido em relação ao contexto histórico. Entretanto, ainda vivemos sob a sombra de uma crítica de fantasia e ficção científica em que autoras ainda encobrem seus nomes por siglas ou nomes masculinos, a fim de conseguir o mínimo do que os autores homens conseguem.
A história de vida de Shelley pode nos parecer muito distante, mas ela se faz presente no meio literário até hoje.
Escritoras como Alice Sheldon e Catherine Nicholls só conseguiram as premiações e a glória literária porque esconderam sua real identidade como forma de atravessar o mar de sexismo na crítica. É desumano colocar em perspectiva que inúmeras excelentes escritoras precisaram negar quem eram para que pudessem conquistar seus objetivos e realizar seus sonhos.
O sexismo na crítica literária não só nos impede de enxergar uma literatura diversa e abrangente, como fere a autoestima e a intelectualidade de escritoras que têm imenso potencial. Até que consigamos atravessar essas barreiras e quebrar essas fortalezas, a ficção especulativa será deficiente do que mais deveria buscar: a verdade.
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